BlogBlogs.Com.Br

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Antes ela do que eu

Crônica Original do Blog "Almirante, Nelson!" indicação minha, muito bom. MESMO!!!


– Ih: a metalinguagem já era.

– Olha, eu concordo que como recurso ela já deu no saco, mas dizer que acabou é ...

– Não. Eu disse que ela morreu mesmo. Ali, na esquina da Nóbrega com a Tenente Firmino, quando ia saltar do ônibus. A sandália ficou presa na porta, aí ela caiu de cara no meio-fio e pimba. Diz que ainda deu umas tremidas na perna, até chegar a ambulância. Acabou morrendo no caminho.

– Hm. Eu devia saber. O próprio título aí em cima não deixa de ser um presságio irônico. Quer dizer que a partir de agora esse nosso diálogo metalingüístico, sobre a ciclotimia das tendências literárias, e repleto de auto-referências, deixa de existir.

– Tá. Mas o que a gente faz?

– Bom. Comecemos admitindo então que não estamos mais no diálogo, uai. E que nossos travessões a partir de agora ficaram obsoletos.

– Que travessões?

– Esses aqui, antes da fala.

– Ah.

– Aliás, nem sei o que fazer com eles.

Não seja por isso: olha aí!

– Queisso?

Ué. Subi no travessão: tou usando de skate. E dá licença, dá licença que eu vou barbarizar nessa rampa aí, ó. Ai, ó, brôu!

– Caramba. Não era rampa. Era o cê do meu “Caramba”. Quase me acertou. E deixa de falar brôu; isso saiu de moda junto com a metalinguagem.

Opa, desculpa. Olha, tenta você também. É fácil.

Ooooooooops \ Ai! Não, não dá certo. Não levo jeito, não. Sou muito velho pra isso.

Então aproveita que você se machucou e usa seu travessão como bengala, ué!

| Ei. Tem razão. Olhaí. Eu agora tenho uma bengala. Tchururu.

Chique no úrtimo, brôu.

| Peraí. Você fica se equilibrando descompromissadamente no seu skate, eu posando de lorde com minha bengala... O problema é que com isso acabamos incorrendo na metalinguagem e dando andamento ao enredo!

Ah, pára.

| Sério! Olhaí: mesmo morta ela faz questão de deixar claro que fora dela não tem trama possível! Não podemos ceder. Não podemos. Precisamos lembrar que essa história não existe mais, caramba: temos que parar de interagir com os elementos constitutivos do texto! Precisamos deixar de acontecer.

Uai. Certo.

| ...

...

| ...

...

| ...

...

| ...

...

| ...

...

| ...

... \

| ...

... \ _

| ...

... \ _ | _ /

| ...

... \ _ | _ / _ \ _ | _ / _ \ _ | _ /

| Mas... o que é isso, agora?!?

Malabarismo com os travessões, ué. A gente não tava usando mesmo.

| Dá pra parar?

Ah, ficou o maior tédio, aqui! Você olha e...

| Pssst! Não dialoga diretamente comigo. Não podemos fazer sentido! Disfarça e fala baixo. Fala baixo.

Tá. O lance é que isso de não acontecer acaba ficando um pé no saco, e...

| É, eu sei.

É, eu sei.

| Por mim eu punha agora um ponto final na história, mas seria sucumbir de novo à metalinguagem.

Por mim eu punha agora um ponto final na história, mas seria sucumbir de novo à metalinguagem.

| Você tá me imitando?

Você tá me imitando?

| Pára com isso!

Pára com isso!

| Pára, caceta!

Ué, não é pra falar baixo, neguinha?

| Escuta, a cada vez que você fala, ou faz sentido, ou tece uma situação, só piora tudo!

Ah, bobagem. Precisamos é passar o tempo. Ei, que tal ficar sem respirar até a fonte do texto ficar azul? Ou concurso de salto à distância com travessão? Não é porque a metafísica morreu que a gente vai ficar borocoxô, e...

| Peraí. Você disse... metafísica?

Ahn. Er.

| Foi a metafísica que morreu?!?

Uai. Me disseram que tinha sido uma meta-whatever aí. Nem reparei direito.

| Caraaaaaaaaaamba, eu devia saber! Eu devia saber! A metalinguagem não estava descendo do ônibus! A metalinguagem era o ônibus! Eu devia saber!

Ué. Se você diz...

| Aliás, dá licença.

O quê?

– Pronto. Voltei o travessão pro lugar dele. Agora tenha a gentileza de fazer o mesmo.

Ah, brôu, eu vou ficar aqui mesmo, ó.

– Desce desse skate agora mesmo! Vamos retomar nosso conto metalingüístico. E brôu não é gíria de skatista!

Vai, deixa eu ficar aqui. Ó, ó, dá pra fazer uns flips radicais nas falas, e...

– Põe esse travessão na frente de sua fala agora mesmo, ou...

Ou o quê?

– Eu dou um jeito de transformar suas falas em diálogo indireto!

Nhemnhemheitoehnhemformahemfalanhemnhiálogonhehnidireto...

– Como é?!?

– Nada. Nada não.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Abrindo os olhos

O ônibus parou novamente e os passageiros começaram a subir. Um ou outro cumprimento, na maioria das vezes uma indiferença mútua. Ele não se importava mais, simplesmente pegava o dinheiro ou ajudava a passar o cartão. Os que deveriam descer desceram, os que deveriam subir já ocupavam seus lugares. Tudo parecia certo e ele tocou com a moeda no metal, para avisar seu companheiro de trabalho. Tudo parecia certo.

Porém, teve algo especial no barulho simples do metal contra metal. O som oriundo do confronto direto daqueles materiais impassíveis, mostrou o quanto as aparências enganam. O trocador havia percebido onde estava e o quanto aquilo era estranho.


...

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Vejo uma idéia em seu passado

Uma música muito bonita em espanhol possui a seguinte frase: “a dónde van las palabras que nunca llegaron al papel” (acho que a frase dispensa traduções). Essa é uma pergunta que ronda minha cabeça já por um tempo. Como eu disse no primeiro post deste blog, ter idéias e não fazê-las é uma das minhas especialidades. Tanto assim que enumerá-las pareceu-me uma boa idéia para um post. E essa eu vou cumprir.

Uma das primeiras que lembro foi fazer papel reciclado. Eu devia ter uns sete anos. Peguei várias folhas de todo tipo de papel, piquei, molhei, amassei, misturei com cola e, quando já tinha o que se chama de papel machê (ou seja, uma massa disforme e nojenta pronta para virar o que você quiser), desisti. A dita cuja havia sido amassada na banheira de brinquedo de uma das bonecas de minhas irmãs; ainda hoje a banheira lilás cheia de papel machê me assombra, como um fracasso que ainda não superei. Demais está dizer que a banheira foi esvaziada no lixo e devolvida a sua verdadeira dona.

Outra foi fazer perfume ambiental. Amassei vários tipos de folhas de árvore, juntei com casca de laranja e joguei tudo num vidro de café. Voilá. O aroma exalado era bom até pelos padrões dos adultos, que elogiaram meus dons. No entanto, para sentir o cheiro precisava-se cheirar na abertura do vidro. O danado não se espalhava. Isso não me deteve: Inventei a técnica de colocá-lo frente a um ventilador. Um sucesso. Mas ele acabou subindo à cabeça: Eu, com oito anos, e minha irmã, com cinco, tivemos a visão de uma produção em massa, com perfumes feitos segundo a vontade do cliente. Começamos a separar as folhas e cascas em sacolas plásticas, ingredientes que seriam servidos conforme requisitado. Não demorou um dia para eles mofarem. Mais uma idéia que acabou, literalmente, no lixo.

Houve outras que inclusive encontraram aprovação fora de minha família. Com doze anos, resolvi virar espião. Peguei um caderno e várias canetas coloridas e comecei a xeretar a vida dos outros. Deu certo, até ganhei outros seguidores. Mas aí mudei de país. Mesmo assim quis continuar. Adivinha o quê? Acabei esquecendo. Meu mundo de óculos escuros e chicletes de menta (que eu achava essenciais para ser um espião) esvaiu-se.

Minhas experiências com blogs não podiam deixar de entrar na lista: Dos que mais serviam como um Orkut porque só umas três pessoas comentavam, aos que tiveram só um post (e foram vários)... a gama é variada. Todos esquecidos. Exceto esse aqui (por enquanto).

Incontáveis livros foram começados, até o último detalhe já planejado. Com o primeira página de cada um deles eu fazia uma Bíblia. Não preciso falar que nenhum passou do terceiro capítulo. Fazer o quê. O único romance que já escrevi até agora foi o que eu não sabia muito bem como iria desenrolar. A improvisação me levou pelo caminho. Se eu souber cada passo que vou dar, para quê me dar o trabalho?

Houve também uma época na que achei que sabia desenhar. Comecei meu próprio mangá. A única página que ele teve deve estar metros e metros baixo terra, junto com outros dejetos. Comics americanos também foram alvo de minhas maquinações, mas nunca tive a coragem de começar nenhum.

Enfim, acho que dá para ver que tenho mais idéias das que posso executar. Mas suponho que uma bem executada equivale um Nilo das que foram abortadas.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

O que você vê?

A luz do sol refletia os tons em cinza da cidade. Em um monótono dia de semana a visão superior do centro era um ninho empestado de cobras. Cobras de terno e gravata, um homem atrás do outro, se movimentando de modo quase mecânico. Corpos em piloto automático.

Numa imagem, talvez, não tão pessimista, eram como uma mata tropical: densa, escura e sufocante. O fluir das pessoas lembrava uma brisa enganosa e sem pretensão. Exatamente como aquelas que insistem em correr entre os enlutados de um velório qualquer.

Duas pessoas [fortuitamente?] se esbararam e a harmonia blasè deixou de existir. Um homem de terno de risca de giz sente a falta do relógio de pulso. Se vira a tempo de ver uma mulher em trapos correr sem olhar para trás.

Ela dava tudo de si, abrindo caminho entra as pessoas. Sem hesitar, como um legítimo predador, o homem inicia a perseguição para conseguir pegar mulher ou o Rolex...

Ele: "Maldita mulher! Está fugindo com uma casa nas mãos e nem deve se dar conta! Esses malditos marginais! Quando eu a pegar, será tarde demais para chamar uma ambulância”

Ela: “Que otário! Deu bobeira perdeu, trouxa! Finalmente consegui alguma coisa de valor! Teremos o que comer por mais de um mês... Ele acha que conseguirá me pegar? Nunca!”

“Folgada... ao invés de procurar um emprego... que tenho EU a ver com a pobreza dessa merda de mulher? Por que um trabalhador digno e honroso como sou tem que pagar pelos erros desse país?”

“Todo mundo me olhando com medo, nojo... que estranho... sinto aversão a mim mesma, mas há uma certo orgulho... uma certa sensação de poder...”

“Claro que existe a possibilidade de ela estar realmente precisando... merda, como é rápida... poxa, mas eu trabalhei para comprar... bom, na verdade, ganhei.. que importa? É minha PROPRIEDADE, que direito essa indigente tem sobre MEUS bens?”

“Nossa... ele continua me seguindo? Deve fazer academia, praticar esporte e essas coisas todas de grã-fino... é hora de comparar.. quem está melhor preparado? O que corre na esteira ou da fome? Talvez ele precise do relógio... deve significar alguma coisa.... é, significa! Significa comida pros meus!”

“Estou ficando cansado... essa merda de relógio foi mesmo presente da interesseira da minha irmã... presente não, estorção...”

“Ele continua vindo...Por quê tudo tem que ser tão difícil? Eis o legado que deixarei aos meus filhos... 'como roubar eficientemente'...”

“Há uns 20 anos, provavelmente, eu daria um belo soco no estômago de um tipo como eu sou hoje... rsrs.... igualdade social, quanta bobagem.... sonhei um tempo, depois a gente cresce... a vida real é essa, malditos marginais! Sempre me frustrava por fazer menos do que gostaria... engraçado, é como se eu me perseguisse agora...a maior chance que já tive de fazer algo como gostaria de ter feito naqueles tempos...”

“Programas sociais? Aquela tal de assistente do governo, passa lá na praça, vê a gente, dá um oi e vai embora... nossa, o que seria de mim sem eles... um gole de leite quente pra calar uma barriga completamente vazia... nada muda... eles serão como eu sou hoje... talvez piores...”

“Nunca tive chances? Ou nunca aproveitei as que tive?”

“Tudo está mesmo assim tão determinado?”

Talvez porque o fôlego havia acabado ou por outra razão qualquer, não importa, mas ambos diminuíram o passo. Pararam a cerca de dois metros um do outro. Quando ela se virou, finalmente, se viram nitidamente. Os dois igualmente ofegantes, de bocas entreabertas e rostos suados. O som da respiração profunda rompia o silêncio entre eles, não a tensão.

Depois de alguns segundos parados, ela ousou se mover. Lentamente, deixou o relógio no chão e recuou três passos, sem tirar os olhos do homem de terno, esperando qualquer agressão. Que não veio.

Ele observou tudo e não moveu um músculo.

O relógio ficou precisamente entre os dois. Eles se olhavam e observavam, com desprezo, aquilo no chão. Era como se repudiassem àquele espelho da alma, receosos de tornarem a ver a hipocrisia, a arrogância, a prepotência, o ódio, a inveja, a avareza e todo o resto...

Voltaram a se olhar nos olhos. Não havia mais tensão no silêncio, apenas cumplicidade. Deram-se as costas e seguiram seus caminhos.

E o relógio? Ficou lá, intocável, eternamente, como um emblema, para que ninguém jamais se esquecesse do que ocorreu naquela terça-feira? Não. Nem sete segundos se passaram e alguém pegou o Rolex para si.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Os Mestres IV

Em 12 de janeiro de 1913 nasceu um dos capixabas mais inspiradores de toda a história brasileira. Sempre envolvido com as questões da educação, política e justiça social. Se formou em Direito em Minas Gerais e trabalhou como jornalista durante muitos anos. Cronista de qualidade inquestionável. Até parece que a definição de crônica foi feita sob medida para seus textos que, de um fato leviano e corriqueiro remontam à profundas reflexões. Assim foi em Com a FEB na Itália, A Cidade e a Roça e Três Primitivos e tantas outras.

Com vocês, o Mestre: Rubem Braga.

Meu Ideal Seria Escrever...

Meu ideal seria escrever uma história tão engraçada que aquela moça que está doente naquela casa cinzenta quando lesse minha história no jornal risse, risse tanto que chegasse a chorar e dissesse -- "ai meu Deus, que história mais engraçada!". E então a contasse para a cozinheira e telefonasse para duas ou três amigas para contar a história; e todos a quem ela contasse rissem muito e ficassem alegremente espantados de vê-la tão alegre. Ah, que minha história fosse como um raio de sol, irresistivelmente louro, quente, vivo, em sua vida de moça reclusa, enlutada, doente. Que ela mesma ficasse admirada ouvindo o próprio riso, e depois repetisse para si própria -- "mas essa história é mesmo muito engraçada!".

Que um casal que estivesse em casa mal-humorado, o marido bastante aborrecido com a mulher, a mulher bastante irritada com o marido, que esse casal também fosse atingido pela minha história. O marido a leria e começaria a rir, o que aumentaria a irritação da mulher. Mas depois que esta, apesar de sua má vontade, tomasse conhecimento da história, ela também risse muito, e ficassem os dois rindo sem poder olhar um para o outro sem rir mais; e que um, ouvindo aquele riso do outro, se lembrasse do alegre tempo de namoro, e reencontrassem os dois a alegria perdida de estarem juntos.

Que nas cadeias, nos hospitais, em todas as salas de espera a minha história chegasse -- e tão fascinante de graça, tão irresistível, tão colorida e tão pura que todos limpassem seu coração com lágrimas de alegria; que o comissário do distrito, depois de ler minha história, mandasse soltar aqueles bêbados e também aqueles pobres mulheres colhidas na calçada e lhes dissesse -- "por favor, se comportem, que diabo! Eu não gosto de prender ninguém!" . E que assim todos tratassem melhor seus empregados, seus dependentes e seus semelhantes em alegre e espontânea homenagem à minha história.

E que ela aos poucos se espalhasse pelo mundo e fosse contada de mil maneiras, e fosse atribuída a um persa, na Nigéria, a um australiano, em Dublin, a um japonês, em Chicago -- mas que em todas as línguas ela guardasse a sua frescura, a sua pureza, o seu encanto surpreendente; e que no fundo de uma aldeia da China, um chinês muito pobre, muito sábio e muito velho dissesse: "Nunca ouvi uma história assim tão engraçada e tão boa em toda a minha vida; valeu a pena ter vivido até hoje para ouvi-la; essa história não pode ter sido inventada por nenhum homem, foi com certeza algum anjo tagarela que a contou aos ouvidos de um santo que dormia, e que ele pensou que já estivesse morto; sim, deve ser uma história do céu que se filtrou por acaso até nosso conhecimento; é divina".

E quando todos me perguntassem -- "mas de onde é que você tirou essa história?" -- eu responderia que ela não é minha, que eu a ouvi por acaso na rua, de um desconhecido que a contava a outro desconhecido, e que por sinal começara a contar assim: "Ontem ouvi um sujeito contar uma história...".

E eu esconderia completamente a humilde verdade: que eu inventei toda a minha história em um só segundo, quando pensei na tristeza daquela moça que está doente, que sempre está doente e sempre está de luto e sozinha naquela pequena casa cinzenta de meu bairro.

A crônica acima foi extraída do livro "A traição das elegantes", Editora Sabiá - Rio de Janeiro, 1967, pág. 91.

______

Tá bom, eu sei exatamente o que você está pensando. "Putz, o Mizaru é um picareta-mor! Tanto tempo sem aparecer por aqui e ainda me vem com essa de postar crônica de autor conhecido?". Você está, quase, coberto de razão, leitor. Não vou me justificar demais, só direi quatro coisas:
- Estou seguindo a norma da coluna mensal de homenagem ao Cânone da literatura nacional. Segunda semana do mês, lembra?
- Rubem Braga é ótimo, se você leu, nem está com raiva porque fiz foi um favor lhe dando esse texto para ler hoje! rsrs =p
- Semana que vem prometo que postarei um texto inteiramente meu.
- Desculpe, minha vida está bem tumultuada. Vocês não tem nada a ver com isso, mas desculpem-me.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

A comida da alma

Semana do Cinema Alternativo na cidade. Osvaldo nunca oviu muito, não se interessa. Que vão todos os alternativos lá ver, ele fica em casa com sua Tela Quente.

Esse ano, no entanto, sua esposa insiste que eles devem ir em pelo menos um filme. "Você não tem cultura, Osvaldo, é um ignorante", diz ela. "Vamos. Vai te fazer bem, expandir seus olhares". Expandir só se for meu sono, pensa Osvaldo. Mas quando a esposa encuca com algo não adianta discutir.

A velada começa quando chegam ao cinema. Até que o lugar não é ruim. Pitoresco, poderia se dizer, com seu pequeno restaurante no fundo e uma livraria do lado direito. Osvaldo até sente que voltou a sua juventude, quando cinema não era em shopping. Pode ter sido uma boa idéia.

As opções são variadas: Tem um filme francês, um japonês, um americano e um de uma nacionalidade de que Osvaldo nunca ouviu falar. Ele sugere, tentando se adaptar ao clima, o francês. A mulher retruca instantâneamente. "Ai, Osvaldo, você não sabe nada. Francês é coisa do pasado agora. Vamos ver o japonês. Eles é que sabem de cinema hoje em dia". Osvaldo não discute. Pagam o ingresso, entram na sala e as luzes apagam.

O filme começa. Dois garotos orientais andam lado a lado, numa rua deserta. Eles não dizem nada. Andam por dez minutos, nos quais não acontece mais nada, só isso. De repente, um deles tira a camisa. O outro o imita. Eles continuam andando, tirando a roupa até estarem completamente pelados. Osvaldo quer sair do cinema. A mulher o segura. "Calma, Osvaldo, pára de ser preconceituoso".

Os meninos somem. Surge um cachorro na tela. Ele fica caminhando na rua, até que aparece uma mulher. Ela tem um cinto na mão, com o qual começa a bater no cachorro. O cachorro não se mexe, enquanto a mulher continua batendo. O sangue jorra. O cachorro morre desangrado. Osvaldo se levanta. A mulher o puxa. "Você está sendo um ignorante".

A mulher e o cadáver do cachorro somem. Aparece um carro na rua. Ninguém o dirige. No seu caminho há arvores, que são derrubadas pelo carro ao passar. Por vinte minutos, o carro derruba árvores. Osvaldo dorme. A mulher o arcorda. "Pare de ser um bruto".

O carro e as arvores somem. Surge um casal fazendo amor em câmera lenta. Aos poucos, eles vão virando pedras, até serem dois rochedos um ao lado do outro. Mais trinta minutos de rochedos estáticos. Osvaldo reclama. A mulher o silencia. "Você não tem alma artística".

As pedras somem. Aparece uma vaca. Ela pasta do asfalto, comendo grandes pedaços de concreto. Come por quinze minutos. Osvaldo simplesmente olha para a mulher. Ela não reclama. Os dois saem de fininho.

"Qual era o nome do filme?", pergunta ele, a modo de comentário.

"Yoguro, amigo meu", responde a mulher com amargura.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

O Fio Vermelho

- Lindomar!

O Lindomar para e pensa. O que pode ser? Ele esqueceu de alguma coisa? Deletou as mensagens, jogou perfume novo antes de voltar... bate mão na cabeça. Esqueceu de escovar a camisa!

- Lindomar, tem um fio de cabelo vermelho na sua camisa!

- Ah, tem, querida?

A voz da mulher, que está na área de serviço, vem com um tom que mistura impaciência e incredulidade.

- Tem. E eu, caso não lembre, sou loira. Liga de explicar como ele chegou aqui?

- Ora, fofinha - diz ele, levantando de seu sofá e caminhando em direção à voz de sua esposa - sei lá. Deixa eu pensar, quem tem cabelo vermelho...

A mulher guarda silêncio. Ele sabe que ela já descobriu tudo, o máximo que ele pode fazer é tentar fazê-la acreditar que está errada.

- Ah, sim! Lembra da gerente de contas, Marlene?

A mulher lembra.

- Pois é. A coitada está fazendo quimioterapia. Soltando cabelo para todos os lados. Hoje até falei com ela pessoalmente oferecendo uma licença temporária.

A mulher fica chocada. Deve estar pensando "coitada da Marlene". Se ela soubesse que tipo de encontro eles de fato tiveram...

- Coitada da Marlene... e pensar que eu vi ela outro dia lá no shopping... - a mulher levanta a cabeça, com uma expressão surpresa no rosto - E ela estava com o cabelo todo!

- Ah, querida, mas ela começou o tratamento anteontem!

- E ela já está soltando cabelo?

- É muito agressivo.

- O que ela está tratando?

- Uma pinta que pode ser tornar um tumor.

- E para isso ela precisa de tratamento agressivo?

- É porque ela assustou. Muitos parentes dela morreram de câncer.

- Tipo quais?

- O pai...

- O pai dela está vivo!

- Calma, eu não tinha acabado. O pai do cunhado.

- Mas o pai do cunhado não é parente de sangue!

- Mas mesmo assim ela assustou com a morte dele!

A mulher para. "Até que faz sentido", deve estar pensando. Ufa! Foi por pouco...

- Até que faz sentido... - começa a mulher, mas a campainha toca e ela é interrompida.

Ela vai até a porta e o Lindomar vai atrás. Ao abrir, ele quase desmaia. É a Marlene. Veio entregar um relatório. O cabelo está impecável.

A mulher já vira com um olhar perigoso, mas ele não desiste.

- Marlene, você está usando peruca?