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quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Eu, eu mesmo e o personagem

Uma das coisas que me dá mais prazer como pseudo-escritor é construir personagens. É aquela sensação de poder divino de criar a vida a partir do nada. Ele surge como um ser frágil, sem nome, sem um físico, sem nenhuma característica marcante. Mas aos poucos vai se mostrando, revelando ao leitor a que veio e o que ele pretende fazer na história. Quando um personagem consegue fazer esse arco de maneira satisfatória e ainda cativar as pessoas, é sinal de que você está indo no caminho certo.

Tenho certeza que alguma vez alguém já te falou para não confundir o escritor com o personagem. Eu concordo com isso... mas em partes. É claro que nenhum personagem é a descrição perfeita do autor. Mas todos eles são como uma colcha de retalhos de experiências. Coisas que o autor presenciou, que ouviu falar, que imaginou. Enfim, praticamente tudo naquele novo ser é fruto de algo.

Isso me lembra muito o monstro construído pelo Dr. Frankenstein. Uma perfeita união de outros pedaços humanos criava outro ser, totalmente independente e fora de controle. E não é assim também com os personagens que criamos?

domingo, 27 de dezembro de 2009

2010!!!!

Eu sei que é a logo do novo Windows, mas não achei outra imagem tão legal assim com 7.

O ano está acabando. Como todo mundo, também resolvi encarnar o espírito “arrumando a casa” e montar uma lista de objetivos para 2010. Fiz um top 7. Por quê 7? Oras, porque é o número cabalístico que contém o 3 (símbolo da perfeição mística: Pai, Filho e Espírito Santo) e o 4 (símbolo da plenitude humana: primeira infância, adolescência, maturidade e idade avançada). Enfim, o masculino e o feminino. A dualidade da vida somadas num número admirado há milênios: http://www.andsol.org/portugues/mat/sete.html .

Mentira, eu fui listando e acabou saindo 7...

1- Humildade.

2- Ler, pelo menos, 20 romances esse ano. Ler mais poesia. Assistir um filme por semana.

3- Passar de 80 para 90% o mínimo de textos da faculdade lidos até o fim do semestre.

4- Surpreender, ao menos uma vez, todos os dias. (a mim ou a qualquer um).

5- Encontrar uma ONG e fazer trabalho voluntário.

6- Reafirmar todos os compromissos que já assumi. (Inclusive o de ser mais sucinto nas minhas postagens... rs)

7- Voltar a pensar, seriamente, sobre um velho grande plano que tenho...

É claro que talvez eu não consiga atender a todos esses objetivos, mas até que acho que consigo. Não importa. Na verdade, o essencial é definir metas. Como dizem, buscar é o combustível da humanidade.



Só pra garantir, em todas as postagens que escrever vou colocar o que estou lendo e o que estou ouvindo:

- Lendo: Budapeste – Chico Buarque de Hollanda

- Ouvindo: Eu vou tentar – Ira!

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Livro de mulherzinha que nada!

Pelo menos, não SÓ de mulherzinha.

Imagine comigo: Festa de fim de ano no trabalho. Os colegas todos reunidos num estranho ambiente de “descontração, mas nem tanto”. Alguns salgadinhos e nenhuma bebida alcoólica. Aquele típico amigo-oculto em que sempre se corre o grande risco de tirar alguém que você, no máximo, cumprimenta levantando as sobrancelhas durante o ano todo.

- Gente, gente...Calma, vamos começar a brincadeira – Diz o chefe da redação. Que, claro, começa. – Meu amigo-oculto é...

Depois de algum suspense e de um ou outra interna do trabalho, descobrimos o felizardo: eu. Como de costume, deixo meu prato de bolo na mesa, vou até o meio da roda, volto para colocar no prato a colher que ainda estava na minha boca, cumprimento o chefe, trocamos abraços e pego meu presente. Já ia deixar de lado – lembrando que a possibilidade de ganhar algo, no mínimo, inusitado, é alta nesse tipo de amigo-oculto – queria guardar pra abrir em casa. Mas meus colegas de redação e das ilhas de edição – pensando exatamente o mesmo que eu, claro – começaram o coro: “Abre! Abre! Abre!”.

Quando abri, senti uma mistura de “que presente engraçado!” com “isso é gozação com minha cara?” e um pouco de “sério que eu pareço precisar tanto de uma coisa assim?”. O dito cujo era um livro chamado Mulheres, por que será que elas...? da escritora e jornalista mineira Leila Ferreira. Depois de algum tempo sem reação, me lembrei de onde estava, agradeci ao chefe, entreguei meu presente para uma colega e seguimos a brincadeira.


Na hora levei tudo muito na brincadeira. A sensação de “que presente engraçado!” e minha queda pelo humor non-sense me fizeram gostar muito da situação. Assim, não podia deixar de contar o caso para meus colegas. Um dos primeiros para quem contei, grande amigo nosso (sim, vocês o conhecem), comentou: - Hum. Um livro de mulherzinha! Estou na minha fase “livros de mulherzinha”. Depois quero emprestado.

Calma, antes de eu dizer com todas as letras o título desse post novamente, vamos à questão principal: O que é um “livro de mulherzinha?” Pra mim, livro de mulherzinha é algum fútil, bobo, que trata do universo feminino de um jeito infantilóide e romanesco [ponto] Sabrina e coisas do tipo. Se assim for, definitivamente, Leila Ferreira, nessa obra, não fez um livro assim.

Não vou fazer crítica literária aqui por dois motivos bem simples. Um, eu não tenho capacidade nem repertório suficiente para tal (bem que queria ter). E, além disso, esse livro me faz querer falar de outras coisas interessantes que não sua estrutura narrativa, as referências, o trabalho com a linguagem, as metáforas e etc. Fiquem aí com minhas impressões de leitura:

Quando peguei, depois do alvoroço da festa e de rir bastante da situação, no livro de capa verde e vermelha publicado pela editora globo, a primeira coisa que fiz foi dar uma olhada geral. Depois de folhear por dentro (mania que repito, por costume, desde que lia os livros da coleção Vagalume) e constatar, óbvio, que não havia gravuras, li o texto da contra-capa. Abri, li a orelha do começo e, na orelha do fim, vi a foto da escritora.

Leila está posando de pé, enquadrada quase de corpo todo (corte abaixo do joelho), calças jeans, um casaco fino azul marinho e uma simples blusa branca por baixo. De braços cruzados e sorriso aberto, ostenta cabelos ruivos-escuros curtos num corte moderno e uma maquiagem leve. Se foi pensado ou não, vai saber, mas essa foto é o resumo perfeito da obra: jovial, descontraída, irreverente e agradável.

Lendo o livro, me senti como que se estivesse sapeando a TV e parasse num programa a la Programa Livre só de mulheres. Se preferir, foi como se um grande grupo de meninas, jovens, adultas e senhoras na “melhor idade” estivessem sentadas num bar conversando naturalmente. Eu era um mosquito voando desapercebido por elas. Enquanto assistia, elas falavam abertamente.

Eu era o único homem no meio daquele tanto de mulher batendo papo e contando causos, uma experiência hilária! O único?! Minto. Durante todo o livro, se não me engano, aparecem três outros homens com direito à fala: Um gay, um baiano que reclama não conseguir dar cinco (isso mesmo que você está pensando) e um pobre coitado de 25 anos que leva “o” pé na bunda porque gosta de roupão de seda e leite quente.

Já ouviram falar de livro que se lê de uma vez só? Pois esse é quase um da espécie. Abri para ler durante minha viagem de BH para Luz. Chegando aqui, parei, cumprimentei meus pais e voltei a ler até terminar. Devorei as suas 242 páginas em cerca de 7 horas: um livro que se lê (no meu caso) de duas vezes só.

O jeito que a autora escreve é fluente e te conduz como se tudo não passasse, com o perdão da repetição, de uma conversa distraída. Aparentemente, o livro foi construído com base em uma série de entrevistas. Mas a Leila Ferreira consegue driblar bem essa estrutura que poderia ser um gesso, ligando os depoimentos com “Fulana que é amiga de Cicrana...” “Beltrana concorda com a outra e emenda...” Claro que parte do mérito está também na edição dos casos que são muito engraçados.

Sem dúvida que a obra tem lá seus defeitos. Leila parece se dirigir para um público bem específico. As mulheres referidas na capa parecem ser hilariantemente consumistas, ultra-vaidosas, inseguras, perfeccionistas, ninfomaníacas, submissas e desesperadas. Em alguns momentos, raros, a narrativa chega a ficar um pouco saudosista e com uma pequena ponta de remorso, ou “culpa” por parte da própria autora (rs). Mas, do mesmo modo que o homem (rude, frio, esquecido, arrogante e objeto) é um estereotipo, acho que as mulheres de Leila também devem ser. Ninguém é exatamente o que está escrito ali, apesar de todos terem maior ou menor familiaridade com cada caso contado. A própria autora parece construir, no fundo, uma crítica à sociedade pós-feminista em que as mulheres acumularam funções e ficaram cada vez mais superficiais.

Li o livro com a intenção de conhecer melhor o universo das venusianas. Depois de “casais dupla sertaneja”, conversas “bacia hidrográfica” (que ainda não consegui imaginar como é de fato), “colocar iogurte em vasilha diferente pra não ‘lembrar’ que é iogurte” e etc, não alcancei o tal objetivo completamente, até porque ninguém nunca vai alcançá-lo. Só sei que ri bastante e agora sou ainda mais fascinado e louco por elas.


- O quê? Claro que mulheres são menos inteligentes que homens – Diz ele brincando com sua namorada.

- Que absurdo! Você não tem argumento cabível pra provar isso! – Respondeu ela, estudante de direito, provocando o parceiro.

- Querida, me diz aqui: Você já viu algum homem comprando roupa de abotoar atrás?

...


segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Modo Subjuntivo



Às dezessete horas, o sol já estava morno. O céu começava a se manchar de um laranjado-magenta que sinalizava a proximidade do crepúsculo. Um fim de tarde que encerrava, com chave de ouro, aquele dia ensolarado de poucas nuvens capaz de dar vida nova a qualquer um que parasse um segundo para deslumbrar essa dádiva. Como se alguém parasse.

Apesar da barulhenta cidade, da multidão de pessoas e carros e de todos os problemas que existem. Naquele dia, alguns pássaros ousaram cantar e as árvores estavam em flores. Era um cenário típico do mais romântico dos contos de fadas. Como se alguém notasse.

Ela estava absorta em seu livro. Apaixonada pela filosofia clássica, se perdia platonicamente no seu mundo das idéias. Mesmo com toda bagunça e desordem, sublime e alheia, Minela estava completamente envolta em sua leitura. Sentada na praça principal daquela cidade tão importante, quase na posição de Lotus. Sentia, ou pensava sentir, uma certa repulsa por todos aqueles que passaram, em suas vidas insignificantes, mesquinhas e pequenas.

Ele era fruto do caos, Herbert, um entregador. Saindo da transportadora e indo em direção à moto, ele atravessa a praça com sete ou oito caixas na mão e alguns papeis na outra. Pensando em qual seria o melhor caminho para pegar, como evitar aquele terrível tráfego da região central, sair do olho do furação do jeito menos ruim. Sentia o estômago roncar, não havia almoçado por falta de tempo. Andava intrigado com como aquele trabalho era incrivelmente chato e em como ainda faltava tanto tempo para a sexta-feira: era quinta. Mas ainda sim, preferia ser do jeito que era do que a ser um “engomadinho” qualquer.

Ele passa em frente a ela. Sem mais, segue em frente e nem tem porque olhar para os lados. Já está a cerca de dois metros dela, quando volta. Para em frente ao banco, coloca as coisas que carregava ao lado dela.

Se dissesse "oi", provavelmente ela responderia "oi?", distraída com seu livro, ele repetiria "oi!" e os dois ririam daquela confusão tola. Talvez ele gostasse da voz dela e perguntasse o que lia e ela, por educação, claro, responderia perguntando se ele já havia lido. Com a possível negativa debochada, ela seria tentada a lhe convencer do quão importante é a filosofia e ele a ouviria só pelo prazer das sílabas saindo naquele timbre, frequência e altura tão próprios. Depois talvez ele até gostasse do assunto e lembrasse do livro que lera quando pequeno, sobre uma menina que recebia um estranho curso de filosofia pelos correios. Ele bem que pediria mais indicações e talvez ela aceitasse dar. Talvez até marcassem de se rever para que ela descobrisse como é "a emocionante vida sobre duas rodas". Quem sabe eles se dessem impressionantemente bem e nunca mais conseguissem conceber um dia sem a presença um do outro?

Numa quinta-feira, às 17:12, a uma pessoa totalmente desconhecida, em plena a praça principal? Herbert, evidentemente, amarra os tênis e continua seu caminho até a moto. Como se ele fosse mesmo dizer oi

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Sapatos de couro





- Nada não, só um resfriado.

...

Terça-feira, sete e trinta: Douglas acorda mecanicamente. Toma seu banho e veste-se exatamente como na segunda: Camisa social azul clara de mangas compridas, calças e paletó cinza escuro com risca de giz, gravata azul marinho com listras brancas guardada no bolso e sapato de couro negro italianos. Esses sapatos eram os melhores do mundo, já dizia seu falecido pai. Tão bons que não se podia experimentá-los antes de comprar. Segundo o velho artesão Rizzon, “uma vez que um pé entra no sapato e estica o couro, ele nunca mais volta a ser o mesmo”. Todas as peças de roupa estavam impecavelmente bem passadas e com caimento perfeito, ele era um retrato de solidez e confiabilidade. Dizem que não há nada melhor para um sub-gerente de processos executivos.

O café da manhã, inexoravelmente, era duas xícaras de café expresso com três gotas de adoçante e quatro torradas médias com uma camada fina de manteiga sem sal. Na última torrada, prazerosamente, permitia-se que a camada de manteiga fosse médio-fina e via naquele ato furtivo sua única alegria matinal. Lava todos os utensílios utilizados e, antes de sair, confere três vezes se cada janela e porta estão trancadas, muito embora more no 15º andar de um prédio em Nova Lima.

Antes de apertar o elevador, confere, em quatro passos, se não esquecia algo: Chaves da casa, chaves do carro, pasta e carteira. Mais uma vez: Chaves da casa, chaves do carro, pasta e carteira... Chaves da casa, chaves do carro, pasta e carteira. Agora sim. Desce até a garagem, abre o Toyota e dirigi-se para o centro.

Douglas detestava gravatas. Sentia como se estivesse sendo sufocado por algum assassino psicopata frio e silencioso. Deixava para vesti-las só quando estava dentro do elevador do escritório entre os 5º e 13º andares. Aquilo era um misto de sensações: sentia-se ousado por evitar o inimigo linguarudo até o fim e também sentia-se como um burro que caminhava conscientemente para o matadouro todos os dias.

Quando terminou de estacionar eram oito horas e três minutos, bastava atravessar a rua, muito embora só devesse bater o cartão daqui há cinqüenta e seis minutos e vinte segundos. Subiu do estacionamento e viu aquele mundo de sempre. Pessoas correndo sem olhar para os lados, celulares na orelha e milhões tons entre o cinza e o cinza escuro. Tão familiar.

Bastou um único passo, que azar, um relaxamento instantâneo e pronto! Um Office boy esbarra em Douglas que se desequilibra e, aos tropeços, vai em direção há uma enorme poça na sarjeta. Os sapatos. Numa manobra bizarra, sobrevoando carrinhos de bebê e apoiando-se em máquinas de construção, ele se desvia da poça. Desvia-se da poça e pisa, com os dois pés, no cimento fresco. Pobres sapatos italianos.

Douglas se contém, sente a fúria sozinho, não é culpa de ninguém ali, o office boy desastrado já estava longe. Para sua sorte, ou do destino, ao lado do prédio onde trabalhava havia uma renomada loja de roupas e sapatos e uma simpática atendente.

Ele entrou e confirmou, logo após o “bom dia” da mulher, o que acabara de pensar, sim, muito simpática. Não que fosse feia, desajeitada ou qualquer coisa do tipo, mas não dizia que era bonita ou atraente, era uma adorável e simpática atendente. Talita. Sem “H” ou qualquer outra firula, normal, morno.

- Outra Gucci Azul Royal, senhor Rizzon?

- Não Talita, hoje procuro por sapatos. Sapatos de couro negro italianos.

- Ah sim, claro. Ótima escolha, senhor Rizzon. Pegarei nossos modelos, um minuto.

E se foi ela sorrindo. Douglas não sabia o que, mas tinha alguma coisa intrigante naquela mulher. Devia ser o sorriso, sincero, onde já se viu uma coisa dessas? Pensava nisso e em outras dezenas de coisas do escritório, estava quase na vertigem da raiva e ainda nem havia colocado a maldita gravata, quando ouviu a música da loja. Legião Urbana. Era uma playlist completa dos brasilienses: Dia perfeito, Se fiquei esperando meu amor passar, Hoje a noite não tem luar, Que país é esse, Pais e Filhos, Quase sem querer. As lembranças da juventude borbulhavam na cabeça do velho, de 28 anos, Douglas Rizzon.

Mas foi numa música triste que ele se sentiu mais feliz. Quando percebeu que podia ser bom não ter quem cure a saudade que ele sentia de tudo que ainda não havia visto. Seus olhos se recaíram sobre uma blusa floral lilás. “Lilás, Douglas?” Ele pensou... sim, lilás.

- Aqui estão nossos mais novos modelos, senhor Rizzon.- Disse a atendente, ao voltar, e, finalmente, Douglas entendeu a graça que todos no ginásio viam em seu nome.

- Talita, acho vou ficar com esse. Posso lhe fazer duas perguntas?

Até onde ele seguiria com aquilo?

- Claro, senhor Rizzon.

- Você pode me chamar só de Douglas, por favor?

Ela enrubesceu e murmurou um “pois não” sem jeito.

- E... Vou para Vitória, quer ir comigo?

O rosto de Talita e seu uniforme vermelho pareciam ter a mesma cor.

- Como assim? Quando? – Ela perguntou confusa.

- Agora. Pegue aquela blusa floral para mim e venha...

- Não. – Respondeu firme.

Douglas engoliu seco. Não? Mas ele não podia deixar a poeira baixar, o ânimo passar, a adrenalina se diluir no sangue. Olhou para ela mais um segundo, continuou imutável. Ele pegou a camisa sozinho e seguiu pela rua.

- Me espera! – gritou ela da porta e saiu correndo – Você precisa ser mais persistente!

Sem sentido algum, rumaram para a estação de trem e pegaram o primeiro para o Espírito Santo. Dez horas de viagem, dois estranhos se tornaram grandes íntimos e, por coincidência ou conveniência, o filme preferido de ambos era Before Sunrise. Chegando no litoral, alugaram um carro barato e andaram por toda a cidade. Os pontos turísticos, as ruelas fora dos guias, centros históricos, a praia.

Quando anoiteceu, nenhum dos dois tinha mais dinheiro.

- Bom, ainda bem que compramos a passagem de ida e volta – Brincou Talita.

- É... Mas não temos lugar para dormir.

- Lugar temos, o carro. Mas você estava pensando em dormir?

Me abstenho de descrições mais detalhistas. Em vitória, Douglas e Talita viveram um universo paralelo momentâneo, um estalo bucólico em algum lugar entre uma segunda e uma quarta-feira.

No dia seguinte, Douglas perdeu a hora e saiu de casa, às pressas, oito e quarenta, seu café da manhã foi um fast food que lhe caiu peculiarmente mal, o trânsito estava um inferno, seu pneu furou e quando chegou ao prédio do escritório, a loja ao lado estava fechada para reformas. Subiu treze andares, se esqueceu da gravata. Parou, sentou-se no lugar de sempre e olhou para baixo: ainda vestia os sapatos italianos sujos de cimento. Cutucou o colega do lado:

- Cara, sabe o que aconteceu ontem?

- Sei. Nada. Esse emprego ainda me mata. – respondeu apático.

- Não. Comigo!

- Uai, você não veio ontem? Por quê?

Douglas ficou espantado e até ressentido por um instante, “nem sentiram minha falta?”, mas logo percebeu que não era com ele o problema. As pessoas à volta é que nunca saíam de seus mundinhos sufocantes. Ele não estava mais sufocado e isso não tinha nada a ver com a gravata. Riu lembrando-se do seu pai e respondeu:

...