BlogBlogs.Com.Br

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

O que você vê?

A luz do sol refletia os tons em cinza da cidade. Em um monótono dia de semana a visão superior do centro era um ninho empestado de cobras. Cobras de terno e gravata, um homem atrás do outro, se movimentando de modo quase mecânico. Corpos em piloto automático.

Numa imagem, talvez, não tão pessimista, eram como uma mata tropical: densa, escura e sufocante. O fluir das pessoas lembrava uma brisa enganosa e sem pretensão. Exatamente como aquelas que insistem em correr entre os enlutados de um velório qualquer.

Duas pessoas [fortuitamente?] se esbararam e a harmonia blasè deixou de existir. Um homem de terno de risca de giz sente a falta do relógio de pulso. Se vira a tempo de ver uma mulher em trapos correr sem olhar para trás.

Ela dava tudo de si, abrindo caminho entra as pessoas. Sem hesitar, como um legítimo predador, o homem inicia a perseguição para conseguir pegar mulher ou o Rolex...

Ele: "Maldita mulher! Está fugindo com uma casa nas mãos e nem deve se dar conta! Esses malditos marginais! Quando eu a pegar, será tarde demais para chamar uma ambulância”

Ela: “Que otário! Deu bobeira perdeu, trouxa! Finalmente consegui alguma coisa de valor! Teremos o que comer por mais de um mês... Ele acha que conseguirá me pegar? Nunca!”

“Folgada... ao invés de procurar um emprego... que tenho EU a ver com a pobreza dessa merda de mulher? Por que um trabalhador digno e honroso como sou tem que pagar pelos erros desse país?”

“Todo mundo me olhando com medo, nojo... que estranho... sinto aversão a mim mesma, mas há uma certo orgulho... uma certa sensação de poder...”

“Claro que existe a possibilidade de ela estar realmente precisando... merda, como é rápida... poxa, mas eu trabalhei para comprar... bom, na verdade, ganhei.. que importa? É minha PROPRIEDADE, que direito essa indigente tem sobre MEUS bens?”

“Nossa... ele continua me seguindo? Deve fazer academia, praticar esporte e essas coisas todas de grã-fino... é hora de comparar.. quem está melhor preparado? O que corre na esteira ou da fome? Talvez ele precise do relógio... deve significar alguma coisa.... é, significa! Significa comida pros meus!”

“Estou ficando cansado... essa merda de relógio foi mesmo presente da interesseira da minha irmã... presente não, estorção...”

“Ele continua vindo...Por quê tudo tem que ser tão difícil? Eis o legado que deixarei aos meus filhos... 'como roubar eficientemente'...”

“Há uns 20 anos, provavelmente, eu daria um belo soco no estômago de um tipo como eu sou hoje... rsrs.... igualdade social, quanta bobagem.... sonhei um tempo, depois a gente cresce... a vida real é essa, malditos marginais! Sempre me frustrava por fazer menos do que gostaria... engraçado, é como se eu me perseguisse agora...a maior chance que já tive de fazer algo como gostaria de ter feito naqueles tempos...”

“Programas sociais? Aquela tal de assistente do governo, passa lá na praça, vê a gente, dá um oi e vai embora... nossa, o que seria de mim sem eles... um gole de leite quente pra calar uma barriga completamente vazia... nada muda... eles serão como eu sou hoje... talvez piores...”

“Nunca tive chances? Ou nunca aproveitei as que tive?”

“Tudo está mesmo assim tão determinado?”

Talvez porque o fôlego havia acabado ou por outra razão qualquer, não importa, mas ambos diminuíram o passo. Pararam a cerca de dois metros um do outro. Quando ela se virou, finalmente, se viram nitidamente. Os dois igualmente ofegantes, de bocas entreabertas e rostos suados. O som da respiração profunda rompia o silêncio entre eles, não a tensão.

Depois de alguns segundos parados, ela ousou se mover. Lentamente, deixou o relógio no chão e recuou três passos, sem tirar os olhos do homem de terno, esperando qualquer agressão. Que não veio.

Ele observou tudo e não moveu um músculo.

O relógio ficou precisamente entre os dois. Eles se olhavam e observavam, com desprezo, aquilo no chão. Era como se repudiassem àquele espelho da alma, receosos de tornarem a ver a hipocrisia, a arrogância, a prepotência, o ódio, a inveja, a avareza e todo o resto...

Voltaram a se olhar nos olhos. Não havia mais tensão no silêncio, apenas cumplicidade. Deram-se as costas e seguiram seus caminhos.

E o relógio? Ficou lá, intocável, eternamente, como um emblema, para que ninguém jamais se esquecesse do que ocorreu naquela terça-feira? Não. Nem sete segundos se passaram e alguém pegou o Rolex para si.

Um comentário:

Anônimo disse...

Quem somos nós?
Sou o seu espelho?
Ow... sem comentários...
Abraços
Mariana