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segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Anacronismo

Virou a esquina da Rua Saturtino automaticamente. O caminho da escola para casa era tão conhecido que Hélio Torres achou mesmo que poderia fazê-lo até de olhos fechados. E por que não?

Estimulado por aquela súbita aventura trivial, o jovem de 15 anos deixou as pálpebras caírem e continuou a caminhar. Um primeiro instante de insegurança e, sem perceber, ele havia diminuído seu passo. Aos poucos, porém, o temor foi passando, o garoto se sentiu mais à vontade percebendo que sabia exatamente o que fazer. Cada desnível, cada calçada, cada buraco a se saltar, os portões que sempre estavam abertos forçando uma passada rápida pela rua e ouviu, inclusive, o casal que todo dia fazia Cooper em uma das ruas perpendiculares e que Hélio gostava sempre de esperá-los passar. Tudo minuciosamente feito e com aquela sensação boa, do medo. Um medo enjaulado pelas grades da autoconfiança.

Passados sete minutos dessa odisséia infantil, Hélio parou segundos antes de ouvir seu nome sendo chamado por uma voz familiar: estava em frente ao portão de casa. Antes de entrar correndo pela passarela do jardim, girar a maçaneta da porta da frente e responder ao chamado da mãe, ele olhou em volta, orgulhoso de sua conquista. Talvez a maioria das pessoas pudesse pensar que aquilo tudo era uma grande bobagem mas, ele pensou, tinha sido, sem dúvidas, um grande feito.

Quando entrou em casa sentiu-se como se tivesse aberto a porta errada. Um estranho estranhamento, um incômodo sem explicação fez surgir rugas de incompreensão na testa do jovem garoto. Tudo estava diferente de algum jeito que Hélio não sabia dizer. Os mesmos móveis, nos mesmos lugares, mas, ainda sim, não pareciam ser os mesmos.

No canto esquerdo da sala ainda estava a velha poltrona marrom do pai, mas não era marrom e sim, bege. Com contornos diferentes. O aparelho de rádio que costumava ficar no centro da sala tinha dado lugar há uma grande janela negra que não dava para lugar algum.

A mãe chamou pela segunda vez, a grito parecia vir da sala de jantar ou da cozinha. Ele foi caminhando e vendo cada canto da casa onde sempre morou de um jeito novo, assustadoramente novo. Quando passou pelo arco da sala de jantar, teve um breve conforto, um suspiro de alívio: Sua mãe estava ao fundo, sentada à mesa. Hélio achou que ela fosse se levantar num salto, com aquele lindo sorriso tão típico e que fosse lhe explicar tudo. Olhou novamente e voltou a suar frio.
Hélio percebeu um ar diferente na senhora Torres, uma postura mais grave, um sentar ereto demais, gélido, roupas com cortes de ângulos retos e impessoais em tons de cinza escuro. Onde estavam os vestidos estampados com flores enormes? A mão que sempre apoiava o queixo meio desajeitadamente? Aquele jeito natural e tão apaixonado de trabalhar que mais lembrava o dele de brincar quando era menor? Ela se virou e, angustiado, ele percebeu que não havia como negar, era sua mãe, Carolina Torres.

Uma conversa breve sobre algo que Hélio não se preocupou em entender, estava muito ocupado esperando pelas explicações que não vieram. A aflição, o pesar e a desorientação continuaram iguais em seu coração até a hora de fazer o dever. Quando abriu seu caderno tudo piorou.

Escrito com sua própria letra, na primeira linha da última página rabiscada: 01/10/2009. 2009?
Hélio vasculhou todos os dias anteriores e confirmou toda aquela maluquice. Como ele havia viajado 60 anos no futuro assim? Sem nem mesmo forçar a mente, conseguia se lembrar nitidamente do dia anterior, 30/09/1949 e dos anteriores... de toda a vida que tivera até ali. E agora essa de 2009?

Mas não era como nos livros que ele havia lido ou como no programa de rádio do Passageiro do Tempo. O garoto não era um viajante solitário, um estranho num mundo futurístico. As pessoas em 2009 o conheciam e, de alguma forma, ele também as conhecia. Eram idênticos à sua família em 1949, melhor, quase idênticos.

De professora no grupo infantil, a mãe passou à gerente de Recursos Humanos de uma empresa. Seu pai não era mais datilógrafo, mas analista de sistemas. Para os outros era como se ele sempre estivesse ali, mas Hélio sabia que aquilo não estava certo.

Dias, meses, anos passaram e o extraordinário parecia não ter fim. O garoto começou a lembrar do que ouvia as pessoas falarem. A infância no interior de Minas nos últimos anos de 1990, as férias nos lençóis maranhenses em 2002, aquela vez que ficou internado por engolir uma pilha do controle remoto aos 3 anos em 1997... Cada vez menos ele entendia e mais precisava voltar para seu lugar... Que lugar?

Não só as lembranças que não eram desse século, o que ele queria, o que pensava, pelo que lutava, com o que se importava, Hélio era um relógio de corda num mundo de poucos relojoeiros... Porém, só ele parecia perceber.

Quanta autoconfiança naquele dia sem ver, quanta falta agora.

Chegou a pensar que tudo poderia não ter passado de um sonho ou de um delírio... Essa coisa de infância em 1940... Então? Filosofia? Biologia? Sociologia? Psicologia? Eu sei que você está esperando uma resposta, leitor, mas nem sempre ela vem ou às vezes está tão exposta que dizê-la seria o cúmulo do óbvio.

7 comentários:

Jessica disse...

Adorei Enninho!
Acho que já disse, mas cada vez mais suas histórias melhoram. CAda vez mais envolventes e intrigantes.
Muito bom mesmo! =)

Anônimo disse...

Fiquei angustiada =P
Acho que conseguiu né?

Luize Valú disse...

pqpq, c escreve bem demais. sério. no inicio me lembrei de quando eu fazia isso, fechava os olhos e ia devagar me guiando para os lugares, muito bom, era realmente um grande feito.
Minha resposta é bem pessoal, acho que é isso que vc quer, ou não. só sei que adorei, vc ta de parabéns. =D

Nath disse...

acho que ficou tao obvio que eu nao entendi.
ahuauhauhha :x
bom, voce falou ali sobre uma sensacao boa de medo.. eu detesto sentir medo. Me sinto totalmente fraca e inferior quando isso acontece. Maaas, sempre tem alguem pra dar um apoio.. ou quase. Ai fica tudo bem :D

fiquei mesmo sem entender o texto, me explica por orkut?
hahaha

Anônimo disse...

"acho que ficou tao obvio que eu nao entendi. ahuauhauhha :x" [2]

rsrs Principalmente o desencontro das datas: "A infância no interior de Minas em 1990, as férias nos lençóis maranhenses em 2002, aquela vez que ficou internado por engolir uma pilha do controle remoto aos 3 anos em 1997".

Ana

Macaco Mizaru disse...

Erro de digitação: resolvido. rs

Alim. disse...

Parabéns, Stephen King..
o seu terror psicológico é incrível, Tchiennin!

Muito bom txt!!

Abs!