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quinta-feira, 27 de agosto de 2009

A Loja


Semana passada estava caminhando pelo Edifício Maleta, passando pelos conhecidos sebos e estabelecimentos do centro comercial, quando avistei aquela loja. Logo após a relojoaria do Seo Roberto, um cubículo no fim do terceiro andar. Tão simplório quanto discreto, as pessoas chegavam e voltavam do final do corredor sem notá-lo.

Eu mesmo não saberia dizer porque o percebi ali. Uma fachada de pouco mais de dois metros, vitrines vazias e empoeiradas, uma pequena passagem coberta por uma cortina artesanal de bambu, sobre a passagem três letras rabiscadas com carvão: Oca.

Entrei. Um balcão simples de madeira maciça. Uma senhora de pele vermelha, olhos negros como o ponto mais distante do universo [e pareciam mesmo estar lá] de cabelos branquíssimos e extremamente lisos, de pé atrás do balcão. Um livro sob suas mãos e prateleiras vazias. Nada mais. Minto, havia também a poeira, muita poeira.

Apesar do claro tipo indígena da mulher, não conseguia parar de pensar na ironia do nome do lugar e se seria intencional. Perguntei a primeira coisa que me veio a mente:

- A senhora tem alguma coisa para dor de cabeça? Um paracetamol? – A pergunta foi uma tentativa de descobrir o que era aquilo.

- Sim e não. – Respondeu com a voz firme e o olhar sem sair de mim.

- Sim e não?

- Não vendo remédios. Mas talvez tenha algo que possa curar sua dor. Contra dor, serenidade.

Dizendo isso, empurou o livro que estava a sua frente em minha direção. Desconfiado o peguei. Aquilo tudo não passava de uma tentativa de criar um “ar místico” ou coisa do tipo. “Essa mulher não passa de uma velha índia que vende ervas” foi meu veredicto mental.

Folheando o livro, quase comecei a rir de nervoso. Mas aquilo estava tão caótico que fiquei, confesso, apreensivo. Não havia ervas, peças de artesanato, roupas, comidas, nada de convencional. Era uma lista de situações do cotidiano, momentos bons, maus, maravilhosos e terríveis, todos catalogados e com preços exorbitantes.

- Acordar ao lado de quem se ama... encontrar dinheiro inesperadamente... ficar do lado de fora de um ônibus que parte... bater com o dedo mindinho na quina do guarda-roupas... quando criança, abrir o tão desejado presente no Natal.... O que é isso? O que você vende?

- Sentimentos, garoto. Momentos especiais na vida do Homem. Basta pedir, pagar e terá.

Continuei a ler.

“Ver o último suspiro e sem poder mudar o que virá... ter o último suspiro... sussurrar canções ao pé do ouvido... explodir plástico bolha... ficar o dia de chuva debaixo do edredon vendo filmes... o primeiro beijo... abraço forte... quinze dias sozinho... quinze anos sozinho... nascimento de um filho... morte de um filho...”

Foi quando cheguei a uma outra sessão “essencialmente puros” e os preços eram ainda maiores, cifras de dez dígitos.

- Serenidade... paz... dor... agonia... honestidade... E esses? Como é possível vender essas coisas?

- Cada um tem seu papel nessa vida, esse é o meu. São pequenas doses evanescentes que devem ser injetadas diretamente no coração, duram cerca de três horas cada uma.

- Os preços são exorbitantes...

- Bem, como lhe disse, são altamente voláteis e, assim como na aplicação, a coleta deve ser direta e imediata. Nesses termos, acho que é um preço justo. Pelo menos, espero que seja.

- ... E... você vende muitos?

- Sem dúvida, é um ótimo presente. Alguns são mais indicados para amigos e outros para inimigos, mas todos são muito úteis, em um ou outro sentido. O meu azar é não ficar com o dinheiro, mas é como dizem, deveria ter pensado bem no que desejava.

Àquela altura já estava completamente imerso em todo aquele ambiente. Pedi para que ela me mostrasse algum, só por curiosidade. A índia abriu o sobretudo pardo que vestia. Pequenas seringas se amontoavam sob a vestimenta. Líquidos de todos os tipos, mais viscosos ou não, de várias cores. Alguns pareciam mais pesados e outros, tão leves que posso lhe dizer, meu amigo, era como se estivessem vivos.

Estava convencido, freneticamente comecei a revirar o catálogo. Eu não ia perder aquela chance. O que mais é desejado por todos os homens e mulheres sobre a face da terra poderia ser meu. Não me importava mais com dinheiro a pagar, tinha algumas economias, alguns conhecidos, poderia fazer empréstimos, vender coisas... não importava, se estivesse ali eu o adquiriria. Na página 467, terceira linha: Juventude!

Sem olhar o preço, disse:

- Quero um desses.

Desde quando entrei na Oca, aquele foi o primeiro momento que acreditei que a anciã fosse humana, percebi pelo escárnio do sorriso que surgiu no rosto enrugado.

- Esse está em falta, sua geração não tem mais portadores dessa essência, apenas adultos em tamanho miniatura. Mas, posso lhe ajudar.

Ao terminar de falar, abriu uma gaveta próxima, como se tudo aquilo já estivesse previsto em sua mente. Abriu-a e me atirou um saquinho com alguns comprimidos de Sildenafil.

2 comentários:

Amandex disse...

Olha olha olha...
Quem é vivo sempre posta!

rsrsrs

O que posso dizer...
Magnifico, como sempre!
Surpreendente é claro, a final de contas eu esperava que saisse da gaveta algo mais...emocionante!
auhushuhsuhuaha
Mas, não posso negar que farmacologicamente falando o seu texto foi perfeitamente elaborado.

Otimo Ennio. E não posso dexar de citar o charme especial que so um cenario como o Maleta poderia dar ;D

Brilhante!!!

Beijos

p.s.:Ainda bem que vc recuperou a "vontade" de escrever. Fez falta aki!

Jessica disse...

ótimo texto!
história é super envolvente, como sempre. gostei muito do desenvolvimento e tudo o mais!
parabéns porquinho!