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quinta-feira, 4 de junho de 2009

Razão de ser



A diligência não precisou parar para que ele saltasse. Com um grito de gratidão, se despediu do jovem rapaz comandando os cavalos:

- Adeus, não há meios de pagar por sua ajuda, garoto. – Disse o viajante para a carruagem que se afastava debaixo de uma garoa insistente.

- Disponha. Desejo-lhe sorte em sua empreitada, forasteiro.

Jean achou estranho ser chamado de forasteiro. Em tantos anos nunca havia se importado, mas naquele momento a palavra entrou dura pelos ouvidos dele. O “forasteiro” era um trovador. Com cerca de trinta anos de idade, mas com espírito de vinte, o artista viajava de cidade em cidade tocando o que, no mundo, lhe tocasse.

Não era sua primeira vez naquele pequeno vilarejo. Apesar das grandes diferenças pelas quais o lugar havia passado, tudo era muito familiar. Algumas casas a mais, novos moinhos, algumas oficinas recentes e o cheiro do esgoto a céu aberto parecia ainda mais forte. Porém, era o único pedaço da Terra onde ele não se sentia um estrangeiro.

A igreja ainda estava no mesmo lugar, a sede administrativa e a delegacia também. Alguns tradicionais artesãos, como sempre, vendiam seus produtos em frente os mesmos barracos surrados, onde um pedaço de couro seco protegia os utensílios da água fria que caía do céu. A diferença estava no semblante dos vendedores. Os reconhecidos por Jean tinham uma gravidade mais profunda nos olhos. Aquelas pessoas desconfiadas e mudas em nada se assemelhavam aos antigos olhos vivos e às vozes estridentes que preenchiam o ar da rua principal tempos atrás

Mas não só os habitantes tinham mudado, Jean, inexoravelmente, também era outro. Seu rosto mostrava bem a distância percorrida desde sua última vez nos becos estreitos e lamacentos do lugarejo. A respiração ofegante denunciava que o velho violão nas costas parecia mais pesado a cada passo. O único vestígio de bagagem, uma trouxa feita de lá, fazia o corpo do Trovador debandar com o peso, dando-lhe um aspecto debilitado e cansado.

Um garoto que brincava na chuva passou correndo. Sem ver, chocou-se com o artista e a trouxa de roupas caiu no chão se desfazendo sobre uma poça d’água. Jean viu subitamente o sangue se esvair do rosto do pequeno menino em sua frente, o medo era quase tocável. Houve um momento de silêncio. A submissão daquele menino aterrorizou o viajante e ele percebeu que a cidade havia mesmo mudado.

- Não se preocupe, garoto. Foi um acidente, uma brincadeira. – o músico-poeta abaixou-se, apanhou um pouco de água nas mãos e atirou no garoto que sorriu espantado – Pronto, agora estamos quites!

Absolutamente, havia algo errado. As pessoas estavam trancadas em casa, as crianças "sorriam". Crianças não sorriem, elas gargalham, gritam, jorram alegria. Sorrisos contidos são para os adultos amargurados pela vida. Um andante distraído podia culpar a chuva fina que caía, mas Jean sabia: não tinha nada a ver com aquilo. A natureza não tem humor, sempre é o Homem quem enxerga o que quer ver na nevasca ou no dia de sol.

O Trovador estava na cidade novamente por uma busca individual. Todo artista têm de ir aonde o povo está. E chega o dia de ir aonde o seu povo está, seus amigos fieis, sua família. Após décadas de peregrinação sem destino, caminhando, vendo, cavalgando, sentindo, navegando, compartilhando, festejando e vivendo, ele sabia que precisava voltar. De algum jeito, ele não se sentia legal.

Porém, além dessa tortura particular, o que lhe angustiava mais era a atmosfera pesada da cidadezinha. Todas aquelas pessoas abatidas e sorumbáticas fizeram Jean mudar seus objetivos.

A chuva, convenientemente, diminuiu ao ponto de se tornar quase imperceptível. Ele foi até a praça principal e se acomodou sobre um tronco de árvore caído, usado como banco.

Embora as saudades de sua mãe lhe ardessem no peito... Embora, mesmo depois de infinitos meses, o cheiro forte de fumo tão prórprio do pai estivesse claro na memória como água limpa… Embora quisesse, melhor, necessitasse ver seus irmãos mais novos o mais rápido possível… Jean era trovador. O Trovador é o artista do cotidiano e sua meta de vida é melhorar o dia de estranhos vistos aleatoriamente. Por isso tudo, com humor e paixão, tirou seu violão das costas e começou a cantar e declamar poemas para os que passavam.



P.S.: A profisão que eu gostaria de ter se tivesse nascido há uns 1000 anos.

P.S.2: Obrigado aos amigos que me ajudaram a escrever: Mateus Mancha, Nogueira, Gustavo, Samuel e demais. Ah, e muito obrigado Milton Nascimento por ser tão genial e ter composto essa obra prima: Nos bailes da vida.

8 comentários:

Unknown disse...

rs... consegui comer tres bananas ao ler ... (Banana ouro)
Adorei o blog
Abraços...

Unknown disse...

Ennio,
vc está escrevendo de forma genial cara!é fato...

Jessica disse...

"artista viajava de cidade em cidade tocando o que, no mundo, lhe tocasse" - amei. Simplesmente lindo.
Adorei o texto. Você tem escrito cada dia melhor, parabéns mesmo! xD

Ludmylla disse...

Aaaah, como é bom voltar a lugares que trazem boas lembranças não? :)

'Absolutamente, havia algo errado. As pessoas estavam trancadas em casa, as crianças "sorriam". Crianças não sorriem, elas gargalham, gritam, jorram alegria. Sorrisos contidos são para os adultos amargurados pela vida.'

Achei maravilhoso, se uma delicadeza sem fim!

Lindo texto, parabéns!

Unknown disse...

Tiennin, seus txts taum cada dia mais impressionantes!!!

Boa cara!!

Abrs.

Unknown disse...

cara, vc tem mto dom pra escrever!
texto maravilhoso, de verdade...
parabéns!

bjo =*

Luize Valú disse...

ahhh ennio, muito bom. eu num sei o que dizer, só que vc deve continuar escrevendo. =)) Parabéns.

Amandex disse...

Nossa Ennio, ficou bom demais!
Ha muito tempo não lia algo tão bem escrito, e o melhor, com um sentimento tao sobrio igual ao desse texto.
Parabens, continua escrevendo!

p.s.:Esse Milton Nascimento ai no final matou a pau!!! Bom demais
Vou simplificar : NOTA 10!